E
Revista de Humanidades y Ciencias Sociales
N. 12, 2 (2022), pp. 175-192
: 0214-0691
https://doi.org/10.33776/erebea.v12i2.7771
Fecha de recepción: 10/V/2022
Fecha de aceptación: 30/IX/2022
P 
Crime, mulher, aborto, infanticídio,
Norte de Portugal.
K
Crimen, woman, abortion, infanticide,
North of Portugal.
R
Neste trabalho, procuramos analisar
a relação da mulher com a criminalidade,
tendo como base dois delitos que, no sé-
culo  e ainda nas primeiras décadas do
século , eram considerados tipicamente
femininos: o aborto e o infanticídio. Trata-
-se de dois crimes cujo estudo é dicultado
pelo secretismo que, geralmente, os envol-
via e pelo estigma que recaía sobre os im-
plicados no seu cometimento A nossa in-
vestigação incide sobre este tipo de delitos,
praticados no distrito de Viana do Castelo,
situado no norte de Portugal. Para o efeito,
recorremos a fontes judiciais, a estatísticas
criminais organizadas pelas autoridades
administrativas, bem como a trabalhos
médicos, nos quais se procurava explicar a
ocorrência destes delitos e a sua associação
ao género feminino.
A
In this work, we seek to analyze the rela-
tionship between women and crime, based
on two crimes that, in the 19th century
and even in the rst decades of the 20th
century, were considered typically female:
abortion and infanticide. ese are two
crimes whose study is made dicult by the
secrecy that generally involved them and
the stigma that fell on those involved in
their commission. from Portugal. For this
purpose, we used judicial sources, criminal
statistics organized by the administrative
authorities, as well as medical studies, in
which we tried to explain the occurrence
of these crimes and their association with
the female gender.
D   : A    
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Alexandra Esteves
Universidade do Minho
E, ,  () . - https://doi.org/10.33776/erebea.v12i2.7771
No século , a reexão sobre o crime assumiu especial relevo, embora cen-
trada na gura do transgressor, em resultado da inuência de Escolas então do-
minantes, em particular da formada em torno de Cesare Lombroso. Considera-
va-se que as doutrinas anteriores, que incidiam, primordialmente, sobre o delito,
tinham falhado, na medida em que a criminalidade continuava a atormentar a
sociedade, havendo, por isso, que projetar novos discursos, desta feita direciona-
dos para os prevaricadores. Assim, os criminosos passam a ser estudados como
seres humanos que levam em si o gérmen do delito (Becker, 2007; Becker, 2006).
Estas ideias, marcadas por um forte determinismo, seguido pela antropologia ita-
liana, tiveram, em Portugal, uma grande adesão, designadamente junto da classe
médica. Clínicos, como por exemplo Roberto Frias, defenderam o carácter inato
da delinquência e a existência de fatores físicos e anatómicos que permitiam ante-
cipar a identicação dos potenciais criminosos (Esteves, 2009).
Revela-se, por outro lado, a tendência para denunciar a existência de crimes
tipicamente femininos, nos quais se incluíam o aborto e o infanticídio, e sobre
os quais incide a nossa análise. Para o efeito, considerámos apenas o distrito de
Viana do Castelo, território que conna, a Norte, com a província espanhola da
Galiza e que, atualmente, engloba dez concelhos (Arcos de Valdevez, Caminha,
Monção, Melgaço, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Vila Nova
de Cerveira, Valença e Viana do Castelo).
No sentido de obter uma visão o mais holística possível sobre a matéria que
é objeto do nosso estudo, cruzámos fontes de natureza diversa, nomeadamente
dissertações apresentadas por médicos na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e
documentos administrativos e judiciais. Por essa via, descobrimos histórias de
mulheres que aqui procuramos (re)construir, além de elementos que nos permi-
tem fazer uma análise, ainda que bastante abreviada, de discursos que sobres elas
e seus atos foram escritos por homens.
O infanticídio signica a morte do recém-nascido provocada pela mãe, du-
rante o parto ou o estado puerperal (Porret, 2005)1. O ato de matar o próprio
lho, no momento do nascimento ou nos primeiros meses de vida, é uma prática
ancestral, que ainda persiste, nos dias de hoje, em algumas regiões e culturas. Na
Índia, por exemplo, regista-se um elevado índice de infanticídio feminino. Im-
porta notar que o estudo deste delito é dicultado por fatores de natureza diversa,
que estão associados ao seu cometimento, e que têm a ver, designadamente, com
os meios usados para dissimular a gravidez, para matar o recém-nascido ou para
1 Segunda Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, infanticídio «he a morte violenta, e meditada
de huma criança que nasceu viva, ou que está proxima a nascer. Este delicto considerado mais geral
se estende ao embrião, e ao feto ainda encerrados na matriz, e consequentemente comprehende
tudo o que respeita ao aborto por causa violenta». No que respeita ao aborto, este autor entende que
«he o parto antes do termo de huma criança, que morre quando nasce, ou quando não podia viver
fora do ventre da mãi, ou que não estava ainda perfeitamente formada» (Sousa, 1803, pp. 309-310).
Alexandra Esteves
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esconder o cadáver. Aliás, a identicação da infanticida e, sobretudo, da vítima,
muitas vezes encontrada já em adiantado estado de decomposição, nem sempre
era conseguida.
Em diferentes épocas, o infanticídio tem sido encarado de modo diverso, em
resultado, designadamente, das mudanças na forma de considerar a criança, tra-
duzidas nos discursos que sobre ela têm sido produzidos, bem como dos valores
morais e éticos em vigor2. Se em determinados momentos foi tolerado, noutros
foi condenado e objeto de punição bem severa. Na Idade Média, por exemplo, a
infanticida deveria ser enterrada viva, empalada ou lacerada com tenazes ardentes.
De qualquer modo, o infanticídio tem permanecido associado à mulher, mesmo
depois de a sua abordagem ter sido deslocada do campo religioso para o clínico,
não deixando, todavia, de ser visto como relevador da debilidade feminina.
A partir dos inícios da Idade Moderna, com a crescente aceitação e valorização
do estatuto da criança, também aumentou a censura e o repúdio do infanticídio.
As crianças começaram a beneciar de especial cuidado, primeiro, nos estratos
mais elevados da sociedade e nos ambientes urbanos, depois, nos grupos sociais
mais baixos e nos meios rurais, onde aquele crime era mais frequente.
A alteração da postura dos Estados perante o infanticídio resulta, em parte,
da generalização do princípio segundo o qual um país seria tanto mais próspero
e mais forte quanto maior fosse o número dos seus habitantes. Assim sendo, era
necessário evitar a morte dos recém-nascidos. O nascimento de uma criança ga-
nhou, então, uma dimensão pública, dadas as potencialidades que representava.
Tratava-se, portanto, da aplicação de uma política demográca com repercussões
na forma de encarar a relação da mãe com o recém-nascido e, consequentemente,
na repressão dos crimes que contra ele fossem cometidos.
O primeiro documento que previa a criminalização do infanticídio -Constitu-
tio Criminalis Carolina-, promulgado no seio do Sacro Império Romano-Germâ-
nico, remonta ao século , mais precisamente a 1525. Sobre a mesma matéria,
foi publicado na Inglaterra, em 1624, o «Ato para Prevenir a Destruição e o As-
sassinato de Crianças Bastardas». Em Portugal, só aparece na respetiva legislação
com a publicação do primeiro Código Penal, em 1852.
A crescente valorização conferida à criança ditou a maior repulsa do infanti-
cídio, que se reetiu nos códigos penais, juntando à condenação social e moral
desse ato uma punição cada vez mais pesada. As mulheres, sobretudo as solteiras
2 Desde a Idade Média que a mulher pratica o aborto através do recurso a meios químicos e
físicos. Os métodos usados para a prática do infanticídio incluíam o estrangulamento, o esfaquea-
mento e as sovas até à morte, além do abandono intencional, que originava a morte da criança por
fome, frio e desidratação. Quanto aos castigos aplicados, estes variavam consoante os Estados. Por
exemplo na Alemanha, no século , as infanticidas eram enterradas vivas. Mais tarde, passam a
incorrer na pena de morte por afogamento ou decapitação, castigos que subsistirão até ao século 
(Valverde Lamsfus, 1994).
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e pobres, começaram a ser alvo de maior vigilância, particularmente por parte do
Estado, e a gravidez e o parto vão perdendo o seu caráter eminentemente privado
para se tornarem assuntos públicos e políticos e motivos de todo o tipo de este-
reótipos.
Até ao século , era muito difícil provar, de forma inequívoca, o cometi-
mento de infanticídio, quando a investigação criminal não dispunha de recursos
sucientes para rebater a argumentação da autora do crime, que alegava quase
sempre que a criança tinha nascido morta ou que a morte tinha sido acidental.
No entanto, os peritos, mormente os médicos, já conheciam alguns sinais que
indiciavam ações criminalmente puníveis. Mesmo assim, as divergências e as dú-
vidas quanto à causa da morte poderiam subsistir. Além disso, muitas mulheres
conseguiam encobrir a gravidez e ocultar os corpos dos recém-nascidos.
Para explicar a prática do infanticídio, um delito que a sociedade tende a
imputar apenas à mulher, na qualidade de mãe, podem ser considerados vários
fatores, designadamente de natureza moral, económica e patológica.
Os preceitos morais vigentes levavam a mulher a esconder a gravidez inde-
sejada, a m de preservar a sua honra. A pureza e o recato eram valores que a
sociedade impunha em particular à mulher solteira, para que pudesse conseguir
um matrimónio vantajoso. Não é, portanto, de admirar que o maior número de
infanticídios fosse praticado por raparigas solteiras, por vezes iludidas por pro-
messas de casamento não cumpridas, como forma de salvaguardar o bom nome
e manter a expetativa de casar. De facto, o reforço da moral no domínio da se-
xualidade, vericado na época moderna, após a Reforma Protestante e a Reforma
Católica, que se traduziu na forte condenação do adultério e na reprovação das
relações sexuais fora do casamento, concorreram para o crescimento do número
de infanticídios.
Não raras vezes, estes delitos eram cometidos por mulheres que, além de
desconhecerem ou fazerem pouco uso de métodos contracetivos, não possuíam
meios para alimentar a criança ou já tinham uma prole numerosa e o agregado
familiar não conseguia suportar as despesas inerentes ao sustento de mais uma
boca, ou ainda porque um recém-nascido podia representar um embaraço para
a mulher que pretendia ganhar a vida e contribuir, assim, para o sustento do lar.
Durante muito tempo, não foi reconhecida a relevância de fatores de natureza
patológica para explicar o infanticídio, designadamente os efeitos da febre puer-
peral e da depressão pós-parto. Na Europa oitocentista, em particular na Ingla-
terra, a loucura que afetava algumas mulheres após o parto constituía o principal
argumento de defesa quando eram submetidas a julgamento.
No século , mantem-se a tendência de culpabilização da infanticida, mas
agora mitigada por novos discursos que colocam a tónica na ausência de assistên-
cia infantil, na sociedade que explora a mulher e se revela incapaz de a proteger
e apoiar. Por outro lado, o infanticídio começa a ser cada vez mais um assunto
Alexandra Esteves
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clínico, na sequência da crescente valorização da função da maternidade, para a
qual, conforme o pensamento vigente, a mulher está predisposta pela sua anato-
mia. Aliás, negar este princípio seria rejeitar a sua própria natureza, o que poderia
indiciar algum tipo de perturbação. Por conseguinte, a crescente medicalização
do corpo feminino fará com que, em muitas circunstâncias, as infanticidas sejam
enviadas para o hospital psiquiátrico e não para o cárcere.
Ao contrário do aborto, que para a sua concretização podia envolver uma
rede de conivências, o infanticídio era, geralmente, um ato solitário, perpetrado
apenas pela parturiente, embora pudesse haver a intervenção de terceiros. Os
métodos usados eram diversos (e.g. afogamento, asxia, envenenamento) e o des-
tino dado aos corpos também era muito variado (e.g. enterrados, lançados ao rio,
abandonados). O local onde o corpo era depositado também pode ser indicia-
dor do sentimento de culpa ou da consciência da ignobilidade do ato praticado,
quando, por exemplo, a mulher enterrava o cadáver em espaços sagrados ou perto
da morada.
O termo aborto signica nascimento antes do tempo, tratando-se, generica-
mente, da expulsão prematura do feto, provocada ou não, recorrendo a meios ou
instrumentos abortivos. Poderia não ser um ato isolado e contar inclusive com
a aprovação e a cumplicidade de familiares. Era aceite na Antiguidade Clássica,
quer na Grécia, quer no Império romano. No entanto, a condenação deste ato
foi-se construindo ao longo dos séculos, chegando-se ao século XIX com a clas-
sicação de crime. Segundo o médico português António Augusto Pereira Leite
de Amorim, na sua dissertação intitulada Aborto provocado sob o ponto de vista da
obstetrícia e da religião, apresentada em 1870, a prática do aborto estava a dar lu-
gar a uma verdadeira indústria, baseando tal conclusão na estatística apresentada
para o contexto parisiense entre 1836 e 1845 (Amorim, 1870). Todavia, aceitava
que, em caso de risco de morte da parturiente, o clínico poderia extrair o feto,
sendo que tal não deveria ser considerado um ato criminoso, pois visava salvar a
vida da grávida.
Segundo o estabelecido no Código Penal Português de 1852, no artigo 358,
Aquelle que de propósito zer abortar uma mulher pejada,
empregando para este m violências, ou bebidas, ou medicamentos, ou
qualquer outro meio, se o crime fôr commettido sem consentimento da
mulher, será condemnado na pena de prisão maior temporária com
trabalho.
O § 4.º do mesmo artigo previa o seguinte:
O medico, cirurgião, ou farmacêutico que, abusando da sua
prossão, tiver voluntariamente concorrido para a execução d’este crime,
indicando ou submnistrinado os meios, incorrerá respectivamente nas
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mesmas penas, agravadas segundo as regras geraes (Código Penal de
1852. Nos 150 anos do primeiro código penal português (1852-2002),
2002).
Já o médico Abílio José Ferreira Castel-Branco, no seu trabalho intitulado
Aborto erapeutico, datado de 1888, também admitia a existência de dois tipos
de aborto: o espontâneo e o provocado. Este poderia ser acidental, criminoso ou
terapêutico. A propósito do “aborto criminal”, teceu algumas considerações sobre
o quadro da época, aludindo, por exemplo, ao facto de as práticas abortivas desta
natureza ocorrerem, maioritariamente, durante os dois primeiros meses de ges-
tação, através do recurso a beberagens e mezinhas, bem como à diculdade de as
provar, por serem executadas num estádio precoce da gravidez, quando ainda não
é notada (Castel-Branco, 1888).
Já sobre o aborto terapêutico, destacou o facto de não ser um ato consensual.
A discussão em torno desta matéria vinha do século , envolvendo teólo-
gos, lósofos e médicos, suscitada sobretudo por motivos de natureza religiosa,
tornando-se mais acesa com os maus resultados alcançados com a realização de
cesarianas. A questão central revestia a forma de dilema: numa situação de risco,
salvar a vida da mãe ou do lho. No entanto, o clínico advertia para o facto de
o aborto terapêutico poder constituir uma tábua de salvação para mãe, quando
a vida do feto já estava irremediavelmente perdida. A não intervenção médica
poderia conduzir à morte de ambos, quando uma vida poderia ser salva. Também
Abílio José Ferreira Castel-Branco alude ao carácter público e ponderado do ato,
que deve ser sustentado na partilha de pareceres entre vários colegas de ofício
(Castel-Branco, 1888).
Quanto aos meios que poderiam provocar o aborto, Abílio José Castel-Bran-
co distingue entre indiretos e diretos. Nos primeiros, destaca o recurso a certas
substâncias, nomeadamente o teixo, a arruda, o açafrão, o iodureto de potássio e
a cravagem de centeio. A sua aplicação por mãos inexperientes podia ter conse-
quências imprevisíveis para o feto e para a mãe. Apenas a cravagem de centeio era
considerada abortiva, ainda que não fosse consensual. Para surtir efeito, teria que
ser tomada em grandes quantidades e durante vários dias. Os meios diretos eram
variados: os excitantes (fricções sobre o útero; fricções sobre o colo do útero; gal-
vanismo; introdução de um corpo estranho na vagina; injeções vaginais quentes
e injeções vaginais de ácido carbónico) e os diretos (dilatação do colo do útero;
descolamento das membranas; a punção do ovo) (Castel-Branco, 1888).
Os dados que compulsámos sobre a criminalidade no distrito de Viana do
Castelo para o período compreendido entre 1839 e 1855, excluindo os anos de
1846 e 1846, sobre os quais não dispomos de registos, a prática do crime de in-
fanticídio representa apenas 0,73 % do total das transgressões comunicadas pelos
administradores dos concelhos ao governador civil. Contudo, alguns dos delitos
Alexandra Esteves
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classicados como infanticídio reportam-se não propriamente ao crime em si,
mas apenas ao aparecimento de um cadáver, o que, por si só, não garante que
tenha havido crime, nem conduz à imputação da sua autoria. Deste modo, mui-
tos destes crimes não têm rosto, desconhecendo-se a identidade do autor e da
vítima, muitas vezes encontrada já em adiantado estado de putrefação, uma vez
que um dos principais métodos de ocultação dos cadáveres dos recém-nascidos
era o enterramento.
Através da correspondência trocada entre as autoridades administrativas (re-
gedores, administradores dos concelhos e governo civil), descobrimos vários casos
de suspeita e de conrmação de aborto. Este delito seria mais fácil de encobrir na
fase inicial de gravidez, evitando-se a exposição a olhares de terceiros durante o
período de gestação, e também porque seria mais fácil fazer desaparecer um feto
do que o cadáver de um recém-nascido. Por outro lado, havia a possibilidade de
alegar que o aborto tinha sido natural e espontâneo. No entanto, nem sempre es-
tes crimes cavam sem castigo. Por exemplo, em 1790, foi levantada uma devassa
contra Maria Quitéria, do lugar de Cortes, Vila Nova de Cerveira, por aborto e
descaminho de criança3.
Com os avanços registados nos domínios da medicina e da anatomia entre os
séculos  e , o feto deixou de ser tratado como uma espécie de apêndice da
mãe e, por consequência, a tolerância em relação aos crimes de aborto tendeu a
desaparecer. A gravidez e o nascimento de uma criança deixaram de ser conside-
rados acontecimentos privados, vividos entre mãe e lho, para adquirirem uma
dimensão pública. Por exemplo, os quadrilheiros tinham obrigação de vigiar as
mulheres grávidas para saberem qual o destino que era dado aos recém-nascidos
(Ordenações Filipinas, 1870).
O facto de o feto passar a ser encarado como uma entidade autónoma levou a
Igreja a importantes reexões de carácter teológico e à redenição da sua postura
face ao aborto, à luz dos avanços cientícos da época. O mesmo sucedeu com os
diversos Estados europeus, que introduziram alterações na legislação civil (Galeo-
tti, 2007).
No século , as crianças passaram a beneciar de especial cuidado e aten-
ção, deixando de ser encaradas como pequenos adultos. Esta mudança de atitude
ocorreu, num primeiro momento, entre os estratos mais elevados da sociedade e,
mais tarde, entre os membros dos grupos sociais mais baixos e nos meios rurais,
onde o infanticídio era mais frequente e o desconhecimento ou a fraca utilização
de meios contracetivos contribuíam para que aquela prática fosse vista como uma
solução para reduzir a dimensão do agregado doméstico (Arnot, 2000).
3 Arquivo Municipal de Vila Nova de Cerveira, Documento Avulso.
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E, ,  () . - https://doi.org/10.33776/erebea.v12i2.7771
Até ao século , não havia em Portugal legislação que visasse diretamente o
infanticídio4. Se considerarmos o primeiro Código Penal de 1852, constatamos
que os crimes de aborto e infanticídio estavam incluídos nos crimes contra a se-
gurança das pessoas. De acordo com o disposto no artigo 358.º, a culpabilização
pela prática do aborto recaía mais sobre o homem e não tanto sobre a mulher,
pois previa que «Aquelle que de propósito zer abortar uma mulher pejada, em-
pregando para este m violencias ou bebidas ou medicamentos ou qualquer outro
meio, se o crime for commetido sem consentimento da mulher, será condemnado
na pena de prisão maior temporária com trabalho» (Código Penal de 1852, 2002,
pp. 113-114). Contudo, a pena seria desagravada para prisão maior temporária
se tivesse havido concordância da mulher5. Entre as circunstâncias agravantes do
delito, estava a prossão dos implicados, em particular médico, cirurgião ou far-
macêutico, embora nem sempre agissem de modo consciente e intencional, pois
podiam ser ludibriados pelos interessados (Código Penal de 1852, 2002, p. 114).
Foi o que aconteceu no caso de Maria Luísa Pereira, solteira, residente na fregue-
sia de Vitorino das Donas, concelho de Ponte de Lima, que abortou, com cerca de
cinco meses de gravidez, tendo lançado o feto a uma cloaca. Tratou-se de um ato
premeditado, pois a mulher, alegando sentir-se doente e febril, conseguiu enganar
o médico, que a sangrou três vezes, provocando-lhe o parto6.
No respeitante ao infanticídio, o artigo 356.º do Código Penal de 1852 de-
terminava que o responsável pela morte da criança logo após o seu nascimento,
ou nos oito dias seguintes, incorria na pena de morte. No entanto, previa uma
atenuante para os crimes de aborto e de infanticídio. Assim, quando as mulheres
praticassem delitos desta natureza, com ou sem ajuda dos pais, tendo em vista a
ocultação do fruto de uma relação ilegítima, a pena seria comutada para prisão
maior temporária, no caso de infanticídio; e, se se tratasse de aborto consciente e
voluntário, havia lugar a prisão correcional (Código Penal de 1852, 2002).
Como se pode constatar, há uma clara associação do crime de infanticídio à
mulher e a desonra aparece como fator determinante no seu cometimento. No sé-
culo , Cesare Beccaria defendia que os códigos morais muito rígidos impos-
tos pela sociedade colocavam a mulher prevaricadora perante uma encruzilhada
sem saída, levando-a a optar pela morte do fruto da transgressão, para evitar que
4 Como constatou Isabel dos Guimarães Sá, os crimes de infanticídio eram igualados aos de
parricídio, estando, portanto, sujeitos à aplicação da mesma moldura penal. Contudo, nas Orde-
nações Filipinas não havia qualquer referência a esta equiparação, aplicando-se a pena capital, tal
como no parricídio (Sá, 1995).
5 Segundo Galeotti, Giulia, a mulher não seria o alvo primeiro da justiça por se poder encon-
trar debilitada pela prática do aborto ou por poder tê-lo praticado em condições mentais anómalas
(Galeotti, 2007).
6 Arquivo Municipal de Ponte de Lima, Administração do Concelho. Livro de Registo da Cor-
respondência expedida para o governo civil, n.º 2.2.1.15, não paginado.
Alexandra Esteves
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E, ,  () . - : 0214-0691
a vergonha e o vexame recaíssem sobre si e sobre o seu lho (Beccaria, 1998). De
facto, o reforço da moral no domínio da sexualidade, na época moderna, após a
Reforma Protestante e a Reforma Católica, que se traduziu na forte condenação
do adultério e na reprovação das relações sexuais fora do casamento, concorreram
para o crescimento dos números de infanticídio, aborto e abandono de crianças.
Nos casos em que foi possível descobrir o estado civil das mulheres envolvidas
em infanticídios e abortos no distrito de Viana do Castelo, vericou-se que 78,6 %
foram praticados por mulheres solteiras, 14,3% envolveram mulheres casadas e
7,1% viúvas. Como se constata, também as mulheres casadas e viúvas recorriam
ao infanticídio e ao aborto para eliminaram o fruto indesejado de uma relação
adúltera ou mal vista pela sociedade. Em 1853, Ventura Rodrigues, residente em
Castro Laboreiro, mulher casada, cujo marido se encontrava ausente, tornou-se
suspeita de ter cometido infanticídio. Apesar de aparentar estar grávida, apareceu,
de um momento para o outro, sem sinais de gravidez e sem recém-nascido. O
corpo da criança acabou por ser encontrado pelos vizinhos, enterrado numa horta
contígua à casa onde morava a infanticida7. Decerto que não seriam raros os casos
de mulheres de maridos ausentes que, tendo-se envolvido em relações adúlteras,
tentavam eliminar o fruto dessas ligações8.
As estatísticas criminais respeitantes ao período compreendido entre 1839 e
1868 não contêm dados referentes ao aborto, mas apenas ao infanticídio. Com
base nesta fonte, apurámos que foram praticados, em média, 1,7 infanticídios
por ano, embora seja de admitir que, descontado o encobrimento e o secretismo
associado a este delito, a sua real dimensão seria bem superior à ocialmente
transmitida.
A partir da leitura do gráco 1, vericamos que os anos representados mos-
tram alguma homogeneidade, com exceção dos anos de 1843 e 1856, nos quais
houve um maior número de infanticídios.
7 AHGCVC, Correspondência com o ministério do reino Março 1853-Janeiro 1854, n.º 1.9.4.23,
não paginado.
8 Segundo Mendes Corrêa, o infanticídio era uma prática recorrente de mulheres que estavam
sujeitas a longas ausências dos seus maridos e que se envolviam em relações ilegítimas (Côrrea,
1914).
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Gráco 1. Infanticídios no distrito de Viana do Castelo (1839-1868)
Fonte: Diário do Governo de 20.02.1840; AHGCVC, Registo dos ofícios di-
rigidos ao Ministério do Reino, n.º 1.9.4-13, não paginado; Diário do Go-
verno de 7.09.1843; AHGCVC, Crimes cometidos em Viana do Castelo, n.º
1.16.5.3-1, não paginado; Diário do Governo de 1.05.1844; Diário do Governo
de 16.04.1845; Relatório apresentado a Juncta geral de districto de Viana do Cas-
telo na sessão ordinária de 1866, Viana, Typ. de André Joaquim Pereira & lho,
1866, não paginado; Relatório apresentado a Juncta geral de districto de Viana
do Castelo na sessão ordinária de 1868…, não paginado; Relatório apresentado a
Juncta geral de districto de Viana do Castelo na sessão ordinária de 1869…, não
paginado.
É de notar que o elevado número de infanticídios em 1855 e 1856 pode ser
relacionado com a subida do preço dos cereais e as diculdades económicas que
afetaram a vida da população, sobretudo da mais pobre (Feijó, 1992). Não pode-
mos armar categoricamente que as circunstâncias económicas adversas levaram
as mulheres a matar os lhos recém-nascidos, mas a angústia causada pela escassez
de alimento, pela precariedade laboral e pela falta de meios de subsistência pode-
rão ter contribuído para que praticassem atos desesperados e irreetidos9.
Considerando o contexto nacional, vericamos que em 1839 foram come-
tidos 36 infanticídios, 17 dos quais no distrito de Lisboa (Diário do Governo
de 20.02.1840, n.º 44). Nos distritos de Braga, Beja, Guarda, Vila Real, entre
outros, não foi registado nenhum, ao passo que, por exemplo, nos de Viana do
Castelo, Coimbra, Évora e Faro, foi identicado apenas um. Em 1843, houve
9 Acerca de casos de infanticídio que tiveram lugar em Paris no século  leia-se Lemoine
(2004).
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uma ligeira descida dos números deste delito, mas, no ano seguinte, a diminui-
ção foi mais acentuada, tendo ocorrido apenas 14 casos (Diário do Governo de
7.09.1843, n.º 210; Diário do Governo de 1.05.1844, n.º 102). Para esta quebra
contribuiu o distrito de Lisboa, onde, em 1844, não foi sinalizado qualquer in-
fanticídio, ao passo que no distrito de Viana do Castelo houve três (Diário do
Governo de 16.04.1845, n.º 88).
De acordo com os dados ociais, o infanticídio não era um crime muito fre-
quente, visto que, com exceção de Lisboa, que apresentava grandes variações em
termos numéricos, mas com tendência para a descida nos anos que observámos,
os valores correspondentes aos restantes distritos apontam para a inexistência de
qualquer delito ou para um máximo de quatro ocorrências anuais.
Entretanto, julgamos pertinente referir que, relativamente ao distrito de Viana
do Castelo, não encontrámos qualquer alusão à realização de abortos por razões
médicas ou terapêuticas, cujo objetivo fosse salvaguardar a vida da mãe. Porém, já
no século , em tratados médicos, se fazia referência ao aborto terapêutico, tido
como necessário quando as mulheres apresentavam bacias demasiado estreitas ou
já tinham sofrido partos difíceis (Galeotti, 2007).
Na origem do cometimento do aborto e, em particular, do infanticídio, tam-
bém estariam razões de natureza psicológica e do foro psiquiátrico10. Em 1844,
uma mulher grávida, residente no concelho de Arcos de Valdevez, ingeriu uma
grande quantidade de arsénico, com o intuito de pôr termo à sua vida e à da
criança que transportava no ventre. Não podemos, todavia, avaliar até que ponto
este ato seria resultante do seu estado de perturbação mental ou da angústia cau-
sada, eventualmente, por uma gravidez indesejada11.
O desespero das mulheres está patente nos métodos que usavam para abortar
ou para a matar os lhos logo após o seu nascimento. Para provocar a morte do
feto, as mulheres e os seus cúmplices, fossem pais ou amantes, recorriam a me-
dicamentos, mezinhas ou a sangramentos. Se, por norma, o infanticídio é um
crime individual, em que a protagonista é a mulher só, ou tendo como cúmplice
apenas a mãe ou o companheiro, no aborto poderia existir um encadeamento de
cumplicidades que promoveriam a formação de uma autêntica rede de apoio à
10 Margaret T. Arnot aponta um conjunto de fatores explicativos da prática do infanticídio na
Inglaterra vitoriana, destacando, para além da pobreza, da atividade sexual pré-matrimonial, da gra-
videz entre jovens de reduzidos conhecimentos contracetivos, a naturalidade com que era encarada
a morte de uma criança, fatores psicológicos e psicossomáticos, que levavam as mulheres a negarem
mentalmente a gravidez e, consequentemente, produziam uma supressão dos sintomas associados
à mesma, o que as impelia a refutar a existência de uma gravidez e de uma criança (Arnot 2000).
Acerca de razões psicológicas e motivações do foro psiquiátrico que poderão estar na base da prática
do crime de infanticídio veja-se Hoer (1984).
11 AHGCVC, Correspondência do Ministério do Reino, 1 Julho de 1844 a 31 de Dezembro de
1845, n.º 1.9.4.15, não paginado.
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mulher que pretendia abortar. Nos casos que analisámos, identicámos vários in-
tervenientes: além da grávida e da família, a parteira ou o médico que executavam
o aborto; a curandeira que fornecia as ervas abortivas a um familiar ou vizinho,
que, por sua vez, as entregava ao marido, à mãe ou ao pai, contando com a coni-
vência da restante família; o boticário, que facilitava substâncias medicinais então
recomendadas. A fama de algumas curandeiras ultrapassava as fronteiras do lugar
onde residiam, sabendo-se, assim, a quem recorrer em caso de necessidade.
Seria difícil à mulher abortar se não contasse com o apoio familiar, dado que
alguns dos métodos utilizados podiam causar sérios danos à saúde e até pôr a
vida em risco. Por vezes, a família tinha um papel muito ativo para preservar a
sua honra. No dia 24 de fevereiro de 1839, o regedor da freguesia de Gondoriz,
comunicou ao administrador do concelho dos Arcos de Valdevez que Maria, lha
solteira de Rosália e de João António de Sousa, dado o seu estado de gravidez,
tinha sido intimada para, no dia um de janeiro, «dar conta da criança», depois de
o cabo de polícia o ter informado de que Maria já teria dado à luz. Os pais da ra-
pariga, convocados para comparecerem na administração daquele concelho, con-
fessaram que a sua lha tinha dado à luz uma criança antes do tempo, alegando
tratar-se de um aborto natural, e que a tinham enterrado. Posteriormente, Maria e
o feto, entretanto recolhido, foram submetidos a exames. Os médicos concluíram
que o feto teria entre cinco e seis meses e que efetivamente já tinha nascido morto,
não tendo sido encontrados quaisquer indícios de que a mãe tivesse contribuído
para o desfecho. No entanto, na sequência de um interrogatório, Maria acabou
por confessar que tinha abortado com recurso a umas ervas que o seu pai lhe tinha
trazido, fornecidas por Joana de Girei, da freguesia de São Cosme e São Damião,
concelho de Arcos de Valdevez, para que as tomasse durante nove dias, após os
quais começou a sentir «grandes comoções no ventre, e que o ultimo que tomara
fora oito dias antes do aborto, ignorando se este lho cauzara»12.
No rol das ervas e outras substâncias consideradas abortivas, destacavam-se o
aloé, a sabina, a cravagem de centeio, o poejo e o óleo de raiz de algodão13. No
caso de estes produtos não produzirem o efeito desejado, as mulheres recorriam a
métodos mais drásticos, como sangramentos, quedas violentas ou banhos quen-
tes14.
12 AHGCVC, Assumptos de Policia, n.º 1.17.5.4-3, não paginado.
13 Sobre as substâncias que concorriam para a prática de aborto e os instrumentos utilizados
para esse m consulte-se Campos (2007). Segundo Ary dos Santos, é necessário fazer a distinção
entre as substâncias que não produzem qualquer efeito sobre o feto, como o açafrão, a tanásia, a
artemísia, a canela ou a marrugem, e aquelas que efetivamente podem ser consideradas abortivas,
como a cravagem e o esporão do centeio, a arruda e a sabina (Santos, 1935).
14 Os meios que Ary dos Santos designou de «mecânicos» eram para o autor os mais ecazes e
englobavam «pancadas violentas no ventre, as massagens, as lavagens, a simples trepidação». Ainda
mais ecazes, segundo o mesmo autor, mas também mais complicados, eram o «descolamento das
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Geralmente, as mulheres enterravam os lhos, depois de lhes terem causado a
morte, nas hortas ou nos campos próximos de casa, ainda que também optassem
por sepultá-los em lugares consagrados, como os adros das igrejas. A localização
do sepultamento podia indiciar a necessidade de proximidade com a criança mor-
ta, ou ser até sinal de arrependimento15. Algumas mulheres, por serem pobres e
para evitarem despesas, optavam pelo enterro clandestino dos lhos. No fundo,
considerariam dispensável a despesa com um ser que nem chegou a viver ou expi-
rou nos primeiros dias de vida, sem que alguém tivesse concorrido para isso. Tal
procedimento podia induzir as autoridades em erro aquando da descoberta do
corpo, levando-as a suspeitar do envolvimento da mãe na morte do lho16.
No século , com o progresso da medicina legal, através de análises ao feto
ou ao recém-nascido e à mãe, era possível descobrir em que circunstância tinha
ocorrido a morte da criança, designadamente se tinha sido natural ou provocada.
Em 1861, em resultado dos exames efetuados ao corpo de uma criança que apa-
receu morta no dia seguinte ao do seu nascimento, lha de Maria Felgas, natural
de Perre, concelho de Viana do Castelo, concluiu-se que esta fora assassinada pela
mãe.
Os cabos de polícia deviam informar o regedor da freguesia sobre as mulhe-
res que se encontravam grávidas, sobretudo quando o seu comportamento era
suspeito. Após o nascimento, as mães deviam ser intimadas para apresentarem
os seus bebés ao regedor. Caso não o zessem, podiam ser acusadas de infanticí-
dio, embora muitas alegassem, quando submetidas a interrogatório, que tinham
entregado a criança na roda dos expostos, ou que já tinha nascido morta. Nestas
circunstâncias, era indispensável o recurso a exames, nos quais intervinham médi-
cos, cirurgiões e parteiras, tendo em vista a averiguação da veracidade dos depoi-
mentos. Segundo Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, os testes efetuados com
o objetivo de esclarecer se o feto tinha nascido com vida, ou se já estava morto
quando a mãe deu à luz, resumiam-se à abertura do tórax. A presença de sangue
na artéria pulmonar era sinal de que o feto tinha respirado, logo nascido com vida
(Sousa, 1803). Para evitarem todos estes constrangimentos, algumas mulheres
tentavam esconder o momento do parto ou mesmo a gravidez, sobretudo quando
se tratava de gravidezes não desejadas. Em todos os casos analisados, é patente a
tendência da mulher para, num primeiro momento, negar a prática do aborto
membranas do ovo e a punção dessas membranas» (Santos, 1935, p. 93). Sobre os métodos de abor-
to utilizados na Europa e nos Estados Unidos, no século , leia-se (Walkowitz, 1994).
15 Em 1840, uma mulher da freguesia de Fontão, concelho de Ponte de Lima, que se sabia
«andar pejada», desapareceu para dar à luz, regressando sem o nascituro, o que fez supor que teria
cometido o crime de infanticídio. Acabou por confessar que a criança nascera morta, tendo-a en-
terrado no meio de um campo de centeio, junto à sua casa. AGHCVC, Registo dos Ofícios para o
Ministério do Reino de 3 de Julho de 1839 a 31 de Dezembro de 1840, n.º 1.9.4.12, não paginado.
16 Sobre casos desta natureza, veja-se Anica (2001).
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ou do infanticídio. Apenas sob pressão e quando confrontada com as provas e os
depoimentos das testemunhas, acabava por confessar ter cometido esses delitos17.
Um dos expedientes utilizados pelas mulheres que pretendiam libertar-se de
uma gravidez indesejada consistia em esconder-se pouco tempo antes do parto.
No entanto, por mais discretas que fossem, dicilmente conseguiam escapar à
vigilância e à desconança da vizinhança, em particular nas localidades mais pe-
quenas, onde o controlo era mais apertado. Rosa, natural da Galiza, era criada de
servir de Mário Alexandre de Oliveira, conhecido como “o Galo”, residentes na
freguesia de Messegães, concelho de Monção. Em 1858, foi apresentado auto de
querela contra os dois por terem abandonado uma menina à porta de uma casa
particular. Segundo os testemunhos, a referida Rosa, cuja gravidez era conhecida,
tinha desaparecido pouco antes de dar à luz, regressando posteriormente sem a
criança. Nos seus depoimentos, as testemunhas declararam que esta criada de
servir tinha estado várias vezes grávida do seu patrão, sem que tivesse aparecido
qualquer criança, com exceção de uma que ela foi buscar à roda dos expostos,
apresentando-a como sua lha18. A propósito deste episódio, importa referir a si-
tuação particularmente difícil das criadas de servir, que, longe da família, tinham
que se sujeitar aos caprichos dos patrões, acabando muitas delas por engravidar.
A eliminação do feto ou da criança, ou então a sua exposição ou abandono, era
uma exigência de muitos deles, sobretudo se fossem casados, por se recusarem a
assumir a descendência das suas serviçais.
Uma questão que, entretanto, se agura pertinente colocar prende-se com
a forma como a comunidade reagia perante estes crimes. O recurso ao aborto
estaria, decerto, bastante arreigado, dado que, como já mencionámos, a sua con-
cretização exigia a conivência familiar e a colaboração de elementos exteriores à
casa e à família. Por outro lado, sabia-se a quem recorrer, partilhavam-se as téc-
nicas e as substâncias abortivas, havendo um conhecimento transmitido dentro
da comunidade que facilitava a sua prática. Se o aborto era encarado com alguma
condescendência, o mesmo não acontecia com o infanticídio, pois a sociedade
considerava-o um crime infame. Muitas vezes, era a própria vizinhança que aju-
dava as autoridades na tentativa de identicar as mães das crianças encontradas
mortas e de apontar as mulheres cujo comportamento consideravam duvidoso,
não se coibindo de dar o seu testemunho para comprovar a culpa dos implicados
no crime de infanticídio19. A dualidade de posições perante estes dois crimes pode
17 Em França, no Antigo Regime, as mulheres identicadas como infanticidas nos interroga-
tórios a que eram sujeitas justicavam os seus atos com a desonra, a miséria extrema e o medo da
recriminação por parte não só da sua família, mas igualmente dos vizinhos e da própria comunidade
(Tinková, 2005).
18 ADVC, Tribunal da comarca de Monção, Documentos Avulsos.
19 A prestação de auxílio pelas autoridades e a denúncia de mulheres suspeitas da prática de
neonaticídio eram habituais em várias regiões da Europa, nos séculos  e  (Spierenburg,
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resultar da ideia segundo a qual, no acaso do aborto e ao contrário do que sucedia
com o infanticídio, o feto ainda não ser uma vida, sobretudo até aos três ou qua-
tro meses de gestação, quando a mãe ainda «não sente a criança».
Em jeito de conclusão, é de salientar que o infanticídio e o aborto eram, efe-
tivamente, crimes essencialmente femininos20. O papel do homem, na condição
de progenitor, na sua concretização, poderia ser de autor, coautor ou cúmplice.
Neste último caso, a sua intervenção podia ser direta ou indireta. Julgamos que a
sua participação se situava mais neste último patamar, recorrendo a diversas for-
mas de coação e pressão sobre as mulheres. Encontrámos apenas uma ocorrência
em que o homem surgiu como protagonista do delito, embora desconheçamos as
circunstâncias do seu envolvimento21.
R
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Arquivo Histórico do Governo Civil de Viana do Castelo, Correspondência do
Ministério do Reino, 1 Julho de 1844 a 31 de Dezembro de 1845, n.º 1.9.4.15,
não paginado.
Arquivo Histórico do Governo Civil de Viana do Castelo, Registo dos ofícios para
o Ministério do Reino de 3 de Julho de 1839 a 31 de Dezembro de 1840, n.º
1.9.4.12, não paginado.
Arquivo Histórico do Governo Civil de Viana do Castelo, Assumptos de Policia,
n.º 1.17.5.4-3, não paginado.
Arquivo Histórico do Governo Civil de Viana do Castelo, Registo dos ofícios diri-
gidos ao Ministério do Reino, n.º 1.9.4-13, não paginado.
2008).
20 Sobre o carácter essencialmente feminino do delito de infanticídio na Inglaterra e na Nova
Inglaterra, no período compreendido entre os séculos  e  (Hoer, 1984).
21 Em 1841, no concelho de Valadares, João José Marco viu um homem com um embrulho
debaixo do braço, tendo descoberto que se tratava duma criança. Este indivíduo lançou-a ao rio e
partiu, depois, em direção a Monção. AHGCVC, Registo dos ofícios dirigidos ao Ministério do Reino,
n.º 1.9.4-13, não paginado.
Das margens à criminalidade: As mulheres e o crime no norte de Portugal...
E, ,  () . - https://doi.org/10.33776/erebea.v12i2.7771
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